De como o afeto tornou-se cláusula geral

Da publicação do acórdão no REsp 1159242 / SP até esta data já se vão mais de 4 anos. Neste decisum, em que se discutia a indenizabilidade do abandono afetivo (debate que em momento posterior poderemos travar), a relatora Ministra Nancy Andrighi, de forma brilhante, dispôs que não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. No conhecido julgado, teceu-se uma singular análise acerca do cuidado enquanto valor jurídico, tese defendida em nosso país, dentre outras mentes, por Tânia da Silva Pereira (O cuidado como valor jurídico, Forense), viabilizando alternativa ao debate acerca da existência de um direito ao afeto.
Efetivamente, e aqui caminhamos pelo umbral de nossa conversa, firmar uma decisão sobre um sentimento humano não absorvido pela lei, em um país de base positivista como é o Brasil, poderia levar à negativa de procedência sem maiores chances de se perscrutarem os meandros do Direito diante de tal tema. Não é incomum tal medida, utilizada faz tempo para iniciar os debates das uniões estáveis e das uniões homoafetivas, que ganharam primeiros contornos patrimonialistas para, só depois, serem reconhecidas, em sua plenitude, como situações existenciais que são.
E, o grande problema em se reconhecer, sem o aval legal, um direito ao afeto estava na outra face da moeda, pois a todo direito corresponde um dever (já sabida a lição). Seria possível impor a alguém ter afeto por outro? Mas, na terra, talvez por um acaso ou um descuido, eis que surge um interesse parágrafo sétimo do artigo noventa e dois do Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 92. As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional deverão adotar os seguintes princípios:
(…)
§ 7o Quando se tratar de criança de 0 (zero) a 3 (três) anos em acolhimento institucional, dar-se-á especial atenção à atuação de educadores de referência estáveis e qualitativamente significativos, às rotinas específicas e ao atendimento das necessidades básicas, incluindo as de afeto como prioritárias.

Em uma análise apertada, alguns pontos devem ser esclarecidos: 1) este artigo não pode ser considerado um erro ou engano do legislador, pois quando se trata de “cuidar” a lei é clara em assim se referir; 2) não se trata de uma necessidade a ser reconhecida apenas às crianças em situação de acolhimento institucional, mas sim um alerta de que também a elas deve tal necessidade ser objeto de ação das autoridades; 3) não se restringe, ainda, a intelecção de tal necessidade apenas às crianças de 0 (zero) a 3 (três) anos, pois a eles defere a lei uma “especial atenção” a tal conteúdo, logo, em relação às demais, ter-se-ia um nível normal de atenção. Afinal, reconheceu a lei que toca a cada criança, e por se tratar de um parágrafo incluído pelo Marco Civil da Primeira Infância (Lei 13.257/16) independentemente de sua condição ou situação jurídica, o direito a ter supridas suas necessidades em relação ao afeto.
Daí, surge a dúvida: isto implica em se reconhecer um dever legal de amar? Uma obrigação de ter afeto por alguém? Não, isto não é apenas juridicamente impossível, isto é humanamente impraticável. Amar, é um fogo incerto que nos soca o peito; ter afeto por alguém é tão fluido como o ar que respiramos. Isto jamais se tornará um dever jurídico. Mas, não implica tal conclusão em se negar o ingresso do afeto enquanto cláusula-geral (que preferimos no lugar de princípio) inerente a todas as crianças. Um direito, sem dever. Como?
Não é possível adentrar à mente humana e descobrir se o pai ou responsável tem (ou não) afeto pela criança. É possível, contudo, realizar análise sobre a conduta daqueles para com o pequeno, observando a inexistência do afeto. Claramente o afeto é dos conceitos de difícil diagnóstico, mas a sua ausência é mais facilmente percebida. O que se defende, então, é que não apenas o cuidado, mas a presença, o “estar-com”, o fazer-se presente, o apoiar, são claro indicativos da presença do afeto e, melhor, fazem sentir na pessoa (criança) o sentir-se querida. Aqui está o nó-górdio, mesmo não sendo possível olhar a alma humana do que dá, é possível perceber-se na janela da alma de uma criança a sanidade de tudo o que recebeu.
Um passo além do cuidado, um passo aquém da verdadeira emancipação. O afeto é o ponto de avanço e, espera-se, seja um ponto sem retorno, um progresso a ser consolidado nas relações, reconhecendo-se o dever de agir de tal forma que sua conduta possa ser percebida como um sinal de importância e de substancialidade daquele que recebe os efeitos da mesma. Que o ser presente torne-se tão essencial e que a existencialidade da filiação importe mais do que a indenizabilidade das condutas.

Wagner Inácio